Keblinger

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A hora quieta por @ritaschultz

| quarta-feira, 27 de junho de 2012
Foi ontem à noite, durante a hora mais quieta dos passarinhos. Inventar um nome não fora difícil, bastou olhar para ela e já estava lá, pronto: Tulipa. Primeiro, não sei por que, mas um nome assim, de pronúncia imaculada, era o que ela exigia. Dessas exigências sem autoridade, só de olhares. Um nome insensato, de todo dia, que a família pudesse lembrar: Tulipa. Há nomes fantasiosos e poéticos, bonitos ou impessoais, cheios de graça e completamente sem sentido: Tulipa. Outros nomes são para coisas, uns para os sentimentos, mas ela era Tulipa. Um nome particular, uma dignidade na pronúncia, uma cor desdobrada no horizone ao se ouvir: Tulipa. De orgulho era o nome dela. De espécie rara. E, melhor, nunca pertencera a nenhum outro ser: Tulipa. Não sobrava. Não faltava. Ela não tinha consciência de pétala, mas de pelos. E de céu de passarinhos. Serenos, elegantes, aqueles escolhidos por ela. Que pulavam no jardim atrás de grilos. E ela atrás deles, os passarinhos. E depois vinha correndo enrolar-se sobre os sonhos e suspirava feliz na terra das nuvens, nas poças de água da chuva, lambendo as patas da aventura anterior. Seu silêncio era sempre o mesmo: extasiado, inconcluso. Pensando no seu nome de flor. Pensando no seu inefável conhecimento de muros e árvores e telhados e ruas. Assim que me via, vinha deslizando como a brisa desliza nos beirais. Postava-se diariamente em seu perfil de animal íntimo e ignorava solenemente os barulhos da casa. Espreguiçava-se animada em seu calor oblíquo de bicho. Eu fazia-lhe festa, carinhos desmedidos como se fosse pele e não pelo, e ela investigava, com sua vida normal, os mistérios da cidade. Compromisso que assumia com desprendimento dos passos largos e premeditados. Nas ruas da cidade! Naquela noite, ela ficou lá, na rua. Não esperava. Não era uma flor. Não era um bicho. Não era nada. Era Tulipa plantada no calor do asfalto. No rastro quente do sol que se fora. Ficou lá, deitada. Suas sete vidas não foram importantes. Nem suas sete glórias, seus sete sentidos, suas sete alegrias. Foi embora quando quis, sem avisar, assim como quem nada quer, desinteressada, terminada. E tal como os vestígios da noite, ela ficou lá, concluída no seu mistério de gato. Estendida sobre si mesma, para sempre imóvel no vão da eternidade.

1 comentários:

{ Dulce Miller } at: 11 de julho de 2012 às 17:54 disse...

Lindo... como sempre tuas palavras emocionam!

 
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